domingo, 6 de abril de 2014

Seis Meses






Há um cheiro estranho no ar que invade a narina alérgica e o espirro escapa num gesto de desconforto. Um lenço de papel é estendido, o que se vê, é a mão de uma mulher bonita por sinal. Com delicadeza, pega e limpa o nariz dando arrepio e irritação pra quem está próximo.

– Muito Obrigado!

A pessoa sorri agradecida, fisionomia séria, mãos cruzadas no colo da perna. Aposta numa idade de trinta e seis anos, o vestido amarelo combinando com a magreza e não recorda de tê-la visto no coletivo para a zona leste no começo da tarde. Ao olhar, verá que não apresentava nenhum aspecto de passageira. Reparando nas mulheres descobrirá a razão da desconfiança.

No ombro bolsa de couro amarronzada, a alça fina combinando com a parte magrinha e branca da pele, cabelos claros com perfume diferente de shampoo que não se achava em nenhuma moça. Ou que nunca teve chance de prestar atenção na fragrância. O sabonete resolve na hora de lavar, simples e prático, sem frescuras como os metrosexuais. Ah, não! Fora com essa moda que a mídia cria e o pessoal trouxa cai que nem patinho. Pra cima dele não!

E os seios pequenos, pescoço fino, de aroma agradável era o contrário do que se via, é mais do que benção, porém, uma sorte que não se vê toda hora.

Com o lenço assoa o nariz, emite som horrível e deselegante. Que vergonha… Fica sem graça, ato desaconselhável num local de muita gente e transporte lotado.

– Desculpa.

Diz pra mulher, que abre sorriso demonstrando que está tudo bem.

Que mulher bonita! Que nome uma beleza dessas teria? Ana, Mônica ou Sofia? Nome de pobre, bem capaz. Ah, nem cara e nem maneira de pobre se pintavam nela. Não entende o motivo de ela entrar num coletivo pra ouvir besteiras e bobagens, identificar estranhos olhares, calor, suor, canseira e barulho. Talvez o veículo esteja no conserto e resolveu arriscar e conhecer a vida de assalariado que depende rotineiramente da locomoção para chegar ao trabalho.

Seu nome é Adriano, sentado do lado da mulher. Ele no banco do corredor, uma outra moça em pé, bem mais jovem, segurando firmemente sua mochila escolar, olhos atentos para o lado de fora reparando nas paisagens monótonas da cidade grande e padronizada, de imóveis de cores iguais, calçadas com a mesma espécie de decoração que transmitia aspecto artificial, sem alma e vontade.

Adriano tem vinte e sete anos, jovem por assim dizer e casado. Casou aos dezoito num impulso de adolescente que não pensa no que faz. Age e pronto, recusando conselhos de qualquer um mais velho, considerando senhor de si e da própria vida. Se a noiva tivesse feito pressão e encostado na parede, até poderia ser perdoado, mas nada disso ocorreu, foi ele que apressado marcou data de casamento não imaginando consequências.

Do casamento vieram filhos, um casal. Ama-os, o melhor tesouro que o homem possa receber, confirmando o prazer da vida de admirar a alegria e a felicidade da criança e entender que o mundo não é tão feio como os adultos pintam.

Ele acordou cedo, na noite anterior avisou que chegaria tarde do trabalho. Sem dar mais detalhes beijou a esposa e os filhos.

Três dias antes discutiram, discussão como todo casal há de ter. O que não é correto, esse constrangimento influencia e o que se imagina na cabeça da criança nessas horas? Evitava o máximo, mas Sônia, de pavio curto, nem esquentava e caia na briga exageradamente.

Adriano está desempregado há seis meses vivendo da ajuda de amigos e parentes e o restante é dos bicos que encontra na internet.

Trabalhava numa excelente e famosa empresa de laticínio, cargo de gerente de produção, salário razoável pra manter as exigências e as vontades de Sônia. Não havia argumentos para reclamar, caminhava às mil maravilhas, até que um ocorrido fez com que tudo deixasse de existir.

A vida que levava se desmoronou feito fila de cartas, não teria mais chances de sustentar a família como desejava, como Sônia sonhou. E o efeito trouxe complicações e pesadelos e as complicações são brigas constantes.

A mulher do seu lado chama atenção. Aos seis meses de coletivo urbano, pegando de manhã e voltando quase no começo da tarde a magra nunca havia aparecido. Se sente atraído, o que é errado, mas tinha uma quedinha nas meninas do seu ex-emprego, quase rolou aventura com uma delas, cinco anos mais jovem, porém surgiu um carinha da mesma idade e decidiram namorar. Ficou um pouco chateado, nutria enorme tesão na garota e nada mais. Que amor existiria se a mente pensava em sexo? Com o passar dos dias considerou correta a aparição do rapaz, o casinho viraria tremenda situação chata para ambos.

E carrega uma vontade danada de querer a magra. A menina em pé desce, ele a segue com os olhos, vendo-a caminhar na direção oposta do ônibus até desaparecer da sua visão. Um engravatado com pasta preta toma seu lugar, estica o braço e abre a janelinha pra arejar. Calor insuportável, arranca seriedade de qualquer um, menos de Adriano.

Há seis meses cismou que a Terra está prestes à extinção. Pronto, cisma maior não havia, pensava na possibilidade dos erros dos homens e das suas consequências.

Chegando do trabalho contou para Sônia que sensata considerou fruto de insanidade, informando que se fosse pra dizer asneiras era melhor ter ficado calado. Insistiu, convicto de que restavam poucos meses e que o mundo precisava estar acordado, mesmo não havendo salvação.

Neste dia brigaram, não por causa do assunto do fim do mundo, porém, por outra bobagem nada séria. A discussão marcou o recorde de exageros que tiveram nos últimos anos de convivência.

No décimo dia, crente da cisma se demitiu. A decisão pegou a empresa de surpresa e ninguém soube como agir.

Mais uma vez discutiu com Sônia, garantiu que não deixaria de colocar comida para os filhos. Ela só não aceitou conviver sem as mordomias que estava acostumada a ter.

A vida prosseguia normalmente. Se perguntassem das mudanças repentinas, vinha noticiar que o fim da humanidade não demoraria e não havia quem acreditasse recebendo conselhos de procurar psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas e manicômios ou que se batizasse em qualquer denominação evangélica ou protestante. Adriano era estranho numa sociedade estranha.

Não consegue controlar seu desejo pela magrela, se pudesse a possuía na frente dos passageiros que conversam rotinas e violências. Talvez considerariam normal, continuariam com conversas banais do dia a dia e há a desculpa do fim do mundo. E se há o fim, tudo é permitido.

Levava consigo um velho canivete, herança do avô paterno. Guardado no bolso da calça jeans, teve uma doida ideia, retirar e disfarçadamente encostar no corpo da mulher. Com jeitinho e falando no ouvido dela exigiria que ficasse tranquila e sairiam juntos, ela na frente e ele atrás com o objeto nas costas, dando a entender que eram namorados.

Conhece uma ribanceira afastada há alguns metros, no bairro da zona leste, quando quer estar sozinho visita o local, poucos arriscam perambular por lá, lugar deserto e perigoso.

Sem remorso levaria e colocaria o canivete no pescoço dela, pediria silêncio e por trás a violentaria com suavidade, sentindo prazer, o choro de medo, as lágrimas salgadas no rostinho branquinho. Imaginou que a vítima começasse a aceitar e pedir dengosamente que ele continuasse os movimentos e ambos explodissem gostosamente no término do ato.

No fim, na beirada da ribanceira, passaria a lâmina do canivete no pescoço dela e jogaria o corpo, observaria alguns minutos e tomaria o seu caminho. Seria o dia dos últimos tempos.

Olha pra ela e sorri.

– Agradeço novamente o lenço. Passo vergonha com as alergias.
– Ah, não tem problema. Acontece.

O sorriso simpático e educado é lindo, infelizmente ele desceria no próximo ponto.

– E desculpe qualquer coisa. – Diz ao levantar e puxar a cordinha. Nessa hora o ônibus não estava tão lotado.

Ela nada diz, olha-o remexer nos bolsos da calça do lado de fora na calçada. O ônibus parte sem chorar um adeus.

Adriano afasta-se das poucas residências que existiam no caminho da ribanceira. O local escondido entre o matagal e o lixão clandestino. Assustou-se com o cadáver de um cão sendo devorado por vermes e mosquitos nojentos rodopiando além de entulhos, lixos domésticos e detritos de animais.

O caminho é um pouco afastado, verifica o relógio e nem é meio-dia. Saiu cedo, não comeu nada pra forrar o estômago. Bebeu um copo de guarapa antes de entrar no coletivo. Não voltará pra família. Aliás, mentiu.

Dissera que recebera uma proposta de trabalho, que não deveria ser recusada e que renderia excelentes rendimentos. Sônia não deu bola, em seis meses, Adriano dizia a mesma história, que o emprego era bom, que receberia bem e no final não era nada daquilo que argumentava. Sabia de cor, sempre trazendo uma miséria que mal dava pra comprar algumas coisinhas para casa.

Sequer foi trabalhar. Adriano permaneceu a manhã inteira no parque municipal da cidade aguardando a hora do aviso de que a família foi assassinada.

Não queria que morressem nas mãos daqueles que descerão do firmamento. Há uma semana procurou uma pessoa que pudesse realizar a tarefa, alguém de sangue frio.

Dois dias antes encontrou o individuo. Entregou uma cópia da chave da porta e que deixaria o portão com fácil acesso para entrar e executar a família dormindo. Sem dor e sem sofrimento.

Melhor assim. Pensou.
No parque, esperou a chamada no celular, preocupado.

– Tudo feito. Como me pediu.

Ao escutar, Adriano sentiu uma dor no peito, um pedaço que se arrancou por dentro, mas o trabalho estava feito.

Na ribanceira um lindo horizonte. E todo esse quadro maravilhoso seria extinto daqui a pouco.
Parado na beirada olha pra baixo. É uma queda e tanto até o chão. O céu limpo e o ar silencioso. Vozes distantes. O último dia da humanidade.

Retira o canivete, com a mão coloca a ponta da lâmina na jugular. Toca a ponta da pele pra descobrir que não teria moleza.

Sua cabeça apontava pra cima e discretamente dois sóis ou duas estrelas desenhavam feito alegoria surreal no céu.
Relembrou dos nomes que escutara quando era menino na companhia da mãe e um colega: Anunnaki, Sumérios, Marduque, Tiamat e Nibiru.

Na mesma direção algo piscava, uma estática com falhas igual televisão antiga, até que a imagem se torna nítida e uma espaçonave encobre as dimensões do firmamento. Por alguns segundos Adriano se surpreende e treme. O fenômeno desaparece.

Nos incrédulos olhos a lágrima teima sair. O coração salta, o gole seco da boca seca, pernas bambas e braços formigando. Lentamente abaixa o braço e guarda o canivete. Dá meia volta e toma o caminho de volta. Respira profundamente.

Ainda faltavam horas para o fim do mundo.





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