Eram misteriosos os
olhos. Era fascinante a mistura calma que compunha seu ser.
Seu Nonô, apelido
ganhado quando mocinho, agora um velho, marcado de feridas, de sonhos
sonhados e misticamente acalentados.
Seu Nonô, um negro,
vindo de longe, apareceu na vila de um
lugar de não sei onde. Instalou-se, fez a própria casinha. Não
trouxe gente, nem mulher nem filhos, trouxe tralhas, panelas e o
coração pra dizer que isso basta. Era carpinteiro, vivia no lar a
descascar madeiras e a lixar, dando trato aos móveis da vizinhança,
colocava novinho em folha, sem nenhum prejuízo, pra deixar clientela
alegre e confiante.
Devoto
católico, levantava todas as manhãs de domingo a ir à missa, de
vez em quanto ia aos sábados, missa das sete da noite, quando havia
vontade, ficava mais tarde pra ajudar os fiéis e o padre, que morava
fora da vila e tinha automóvel despencado e despenado. E se não
carecia
vontade, lá ia dar as mãos para a benção do padre e saía às
pressas. E de lá ficava, sequer víamos o rosto dele, porque víamos
na janela, a olhar gente na rua, que por cima não era movimentada,
vila vazia, quase fantasma. Movimentada nos dias de festa, festa na
vila somente de igreja, de resto não encontraria. E morríamos de
tédio, desejando um sonhar de meninos a voar dali, pra conhecer se o
outro lado à vida era mais gostosa de viver, fazer do homem um sonho
sonhado.
Mas Seu Nonô nem
curioso ficava de conhecer outros lugares, sequer comentava, se ouvia
tal assunto, criava carinha de desgosto e desaprovação. Possuía
seus contras e não reclamava de quem almejava tal desejo.
E quando carícia
de vontade construía
carros de madeira para os meninos, bonequinhos e cavalinhos. Era mais
nas temporadas dos dias das crianças e o natal. No Cosme e Damião
enchia a criançada de doces e balas.
Um dia perguntei pra
mamãe, se um dia reparou nos olhos dele.
– Já sim. Olhos
que procuram alguém nas estrelas, né?
Não imaginei como
imaginou mamãe, mas continha algo de procura, de busca, de
misteriosos vazios perdidos. Desenhavam segredos trancados no
interior, talvez o sufocasse, talvez o incômodo acostumasse ou que
acostumou ao incômodo. Se havia, nunca deu mostra, totalmente na
dele de silêncio outonal.
Até que um dia o
Seu Nonô adoeceu.
Vieram às mulheres
da vila, mamãe também foi. Era febre danada que o homem contraiu,
tremores e alucinações. Chamaram
o doutor da cidade mais próxima, esse de tão bêbado, não
resolveu, o único que o povo recorria e era difícil porque vivia o
dia inteiro enchendo a cara. A solução seria chamar o doutor da
capital, só que levaria três dias de viagem e até lá o Seu Nonô
poderia ter batido as botas.
Resolveram que a
melhor solução era rezar, ajuntou o pessoal na intensão de que
melhorasse e voltasse a ficar bem. Convocaram velhas rezadeiras,
daquelas que carregam enormes rosários no pescoço, que oram pra
tudo, seja o que for. E nada, nada ajudou, continuava na mesma
situação. Alguém mencionou uma missa das sete em plena
sexta-feira, de que nesse dia era melhor para as almas. Não deram
bola pra assuntos espirituais e a missa sim, portanto que fosse feita
no domingo como de costume.
E nada de melhorar,
parecia que se entregou sem descobrir a causa da enfermidade. Davam
como morte certa, que preparassem o caixão e as velas para o
velório. Aceitaram uma última reza, um terço e se não melhorasse
levaria pra capital e o deixasse num hospital para algum médico
solucionar a cura.
Estava toda vila na
casa do Seu Nonô rezando e cantando hinos de adoração, noite de
quinta feira, beirando as vinte e horas. Na verdade, foram às
mulheres que ficaram dentro, quase todas. A casa não comportava
tanta gente e os homens é que ficaram do lado de fora junto com o
restante das mulheres e as crianças de vigília, caso algum perigo
aparecesse na hora.
Foi nesse período
que escutamos o som de cavalo correndo, em forte galopada, muito
apressado, nervosamente chegando
no
local.
E assim
presenciamos, ela chegar, uma moça muito jovem e muito bonita,
montada num negro corcel. Parou de frente a casa. Não pronunciou
palavra nenhuma. Saltou do cavalo e caminhou pra dentro. Pra mim era
uma deusa, uma rainha sem igual, de grandiosa beleza, um anjo que
pousou na Terra.
Pra surpresa dos
presentes chegou-se perto do doente, abaixou a cabeça e falou:
“Estou aqui. Fique bem, não vá. Nosso encontro, você sabe, não
tardará a chegar.” Beijou a testa e sem falar com ninguém saiu e
montando no corcel descarregou a galopar pra bem longe.
No dia seguinte o
milagre aconteceu, Seu Nonô curado, falando bem e com muita vontade
de trabalhar.
Antes, com todo mundo preocupado foram na outra cidade trazer o
médico bêbado pra examinar. Não encontrou nada, estava bem de
saúde, febre não havia. Tudo, tudo certo.
Milagre! Diziam
alguns. Foi à moça misteriosa! Disseram outros. Ficaram nesse jogo
de milagres e moça misteriosa. Discutindo quem curou o Seu Nonô.
A
moça seria
alguém próxima que ele negaria se houvesse ligação.
Certo dia por
distração me revelou que quando jovem enamorava uma bela moça
branca de nome Isabel, que eram felizes e apaixonados. Estavam
prontos pra casar, infelizmente os pais da moça não concordavam e o
pai sem piedade assassinou a filha na frente do Seu Nonô. Morrera
nos braços dele a coitadinha. Por culpa da tragédia começou a
vagar pelo mundo completamente desorientado, só encontrou a paz
sendo carpinteiro, não buscando um novo amor. Pra ele que dissera
que na idade que está o amor tomou asas e voou. Felicidade tamanha
com a solidão completou.
Mas... E os olhos
que procuram algo nas estrelas? Eles estão lá, vivos, iluminados e
talvez chegue um dia que não precisarão olhar para o alto e caso o
dia chegar é que Seu Nonô estará lá juntinho delas.
(Rod.Arcadia)
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