domingo, 22 de setembro de 2013

O Ultimo Copo







A música já não tocava mais. Os companheiros sentados, se encolhiam do frio e quando abria a porta, os olhos desenhavam pavor. No balcão a mulher de quarenta anos, magra, com o cigarro na boca brincava com o dedo dentro do copo de cerveja quente. Fazia círculos e quem sabe pensando em algo ou em alguém.
O balconista cansado conferia no celular algo interessante nas mensagens, não queria mais servir ninguém, queria que a hora chegasse pra correr nos braços do namorado de vinte e dois anos. Enviou a mensagem avisando que logo estaria em casa.
Os companheiros encolhidos discutiam Descartes que sem querer encontraram num desses lugares obscuros que desconhecemos. Se é que conheciam as teorias do famoso filósofo que pouco tinha de interesse. Ninguém entendia o que o outro falava.
Encostado no balcão com último resto de uísque ele tentava pensar. Entrou fazem três horas, não conversou, apenas pediu a bebida. Se sentia desconfortado quando a porta abria.
Não havia necessidades de estarem dentro, mas algo os fazia permanecer. Não era o frio, nem a música. O lugar possuía uma magia especial, uma fuga para o que há de pior do outro lado.
O balconista contente verificou o relógio pendurado. O expediente se encerrou. Entrou no quartinho para se trocar, que bom, ansioso, pensava no namorado, de abraçá-lo, de ser amado.
Ao vestir, era outro homem. Bem bonito, simpático, cabelo curto e escuro liso. Enviou outra mensagem avisando que o expediente terminou. Vestiu a jaqueta de couro e olhou para aquela gente. Tinha que avisar que o lugar estava fechando.
Os companheiros cada um contava uma farsante história. Sereias em alto-mar, ninfas apaixonantes, amantes profissionais. Cada causo, fantasia melhor que a outra. Os exageros nas bocas bêbadas e cuspidas, parecia um campeonato.
A cerveja dormia quente e nenhuma vontade de beber passou pela cabeça. Nem que estivessem afim de embora.
Tinha pena de colocar na boca o último vestígio da cerveja. Não possuía o sabor de antes. Sem graça, sem gosto. A mulher de quarenta anos de olhos perdidos, distinguia nada a frente. Baixou a cabeça, tentou saber como veio parar ali, quem deixou pra trás. A cabeça doía, era demais, forçado e doloroso. Levou a cerveja a boca para no meio do trajeto desistir. Voltou a fazer círculos na bebida.
O estranho ouvia a algazarra dos companheiros. Sabia porque estava, o motivo, a razão, a preocupação. Tarde, olhou o relógio. Tarde pra arrumar o que deixou, tinha medo, de não querer ver o que há do outro lado. Engoliu um pouco o uísque. Parecia um parasita sentado e acomodado.
O balconista com o ar confiante, fecharia o estabelecimento e estava se lixando para os visitantes. Não estragaria o momento por nada. Ninguém o reparou que após mudar não era mais balconista e sim um rapaz normal.
A nostalgia da mulher de quarenta anos lhe apertou o coração. O que ela faria numa hora dessas. Teria filhos, esposo? Morava nas ruas? O rosto seco e sem brilho contrastava com o ambiente. Decidiu que não era pra ele.
O estranho o olhou buscando respostas. Quem seria? Pensou afinal. A mente divagava lerdamente. Não recordava do rapaz com feições belas atrás do balcão. Quem seria? O balconista deu um sorrisinho pra disfarçar. Pensou nos braços aconchegantes do namorado.
Os companheiros mal sabiam o que falavam. Também estranharam o balconista. Continuaram cada um dizendo a própria bobagem.
Era chegado a hora. Sentiu um pouco de remorso. Porem, tinha pressa e se demorasse, perderia o ônibus.
– O bar fechou, senhora e senhores.
Foi como se o tempo parasse. Foi como se estivesse dito o que não deveria dizer. Não viu reação, chiado algum. O que pensam que estão fazendo? Pensou. Irritado por não ser escutado. Repetiu. Usando potência na voz.
– O bar fechou, senhora e senhores!
Sim. Isso. A voz ecoou no silencio do ambiente. Finalmente estaria livre para o namorado de vinte e dois anos.
O estranho não descobrindo quem seria o rapaz imaginou em partir. Partir pra onde? Se pedisse, pediria pra pousar no chão do bar. Exatamente, ficaria seguro e protegido. Além disso, ninguém o procuraria, nem a friagem do frio.
A mulher de quarenta anos não tinha noção do que estava acontecendo. Esboçou pronunciar, a palavra morria na boca. A cerveja perdeu o sentido. Queria ficar. Queria morar ali e não olhar lá fora nunca mais.
Os companheiros surpresos pelo aviso. Instantes a entender, cabeças em direção ao balconista, logo retornaram a falação sem sentido, cada um com uma conversa diferente da outra.
O balconista se irritou, pensou em gritar, falar palavrão, colocar essa gente pra fora. Daí notou que era um homem sozinho contra todos.
– Tenho mais nada pra fazer aqui. Dane-se, que se matem!
Tinha chave da porta, sairia e fecharia o estabelecimento, que a mão divina cuide dos pobres coitados.
Vestiu as luvas, retirou o celular, pensou... desistiu. Não precisava averiguar, de manhã encontraria o pessoal adormecidos, preparados para mais um dia e estaria preparado para servi-los.
Abriu a porta, o vento frio o apanhou. Houve protesto, não deu bola. Saiu, como estava fria a noite. Fechou a porta atrás de si. Passou a chave. Virou a placa de aberto pra fechado. Colocou as mãos no bolso da jaqueta a passos apressados andou ao ponto de ônibus mais próximo.




O que fazia os companheiros de não querer encarar o mundo lá fora? Esqueceram da vida, apagaram preocupações, sacrificaram segredos. Quem os conhecem reconhece seus pecados e culpas. Cada um tem a própria história que nem o mais bravo conseguiria desvendar.
Oito horas atrás. A mulher de quarenta anos discutiu com o amante.
Seu bairro ficava uma hora de distancia. Tinha medo de caminhar, alguém a avisou que era perigoso, pessoas perigosas andavam por ali. Apressou os passos, e não havia ninguém, pois quem encararia o frio que machucava a pele como agulha? Apressou para também escapar da friagem, porém o medo dominava.
Aliviou quando avistou o ponto de ônibus e nele aguardando seis homens. Seis homens rindo, falando alto. Bons companheiros, pensou. E se sentiu com sorte.
Finalmente no ponto olhou os homens e eles a encararam, mas a encararam com desejo. Sim, a desejaram, com o tempo gelado, morto e cinza. Mãos seguraram, outras rasgaram a roupa e gargalhando começaram um a um.
Deixaram-na nua no chão. Chorando e tremendo desorientada andou, o rosto avermelhado. Andou tanto que não reconhecia onde se encontrava, que havia movimentação, luzes, música, agitação. A mulher de quarenta anos entrou no local mais próximo.
O bar vazio, olhou para o balconista, um rapaz de feições bonitas. Pediu cerveja. A mão tremia, o balconista disfarçou o olhar. Ele abriu a garrafa, depositou a bebida no copo, ela bebeu. Um alívio percorreu o corpo. A música ainda tocava e era linda e flutuou ao compasso da melodia.
Um tempo depois os companheiros na maior algazarra entraram. Discutiam futebol, mulher e futilidades. Da mesa gritaram pedindo cerveja. Alegres e brincalhões fizeram chacota com o balconista que não gostou. Pediram pra música ser trocada e foram atendidos. Queriam farra, festa, falar bobagens e coisas serias, queriam ser excluídos do mundo.
Por fim, o estranho. E quem seria senão o amante da mulher de quarenta anos.
Sim. As peças preparadas e concluídas. Desfecho da maldade escancarada aos olhos de quem não enxergam.
Horas atrás discutiu com a amante. Quase a agrediu. Ela disse que ia embora e foi. Ficou no vazio, no arrependimento, amava-a. Não queria que terminasse o caso numa discussão estúpida. Correu pra trazê-la de volta. Daria carinho, faria amor, falaria para viverem juntos, morar. Correu, infelizmente sem sorte.
Os companheiros passaram por ele, mal o perceberam. Derrotado, viu a felicidade se apagar. Sentiu-se como o pior homem.
Dentro do bar, ninguém saberia quem seriam os personagens. Pois cada um tinha a própria prisão.




A chave virou duas vezes antes de abrir. De frente sentado de costas no sofá com a televisão ligada havia uma pessoa. Com toda discrição fechou a porta e trancou. Retirou a jaqueta e as luvas. Lançou-os na poltrona próxima. Se aproximou perto da pessoa que não proferiu reação.
– Olá, sentiu minha demora? Desculpe, hoje foi barra naquele lugar. Quanta gente ignorante, grossa e burra. Só pensava em você, sabia? É o meu protetor pra suportar, se eu não o tivesse, teria entregado os pontos há muito tempo. Vou tomar banho, tirar o peso do corpo e preparar o jantar. Já volto, meu docinho.
Beijou o namorado que nem se mexeu.
Entrou no chuveiro. A água quente era o remédio para todos os males imundos da sociedade. Não se sentiria culpado pela demora, decidiu limpar a sujeira impregnada na alma.
O namorado imóvel parecia morto. Talvez a alma se foi há muito tempo, ficando a carcaça e que o infeliz do companheiro não percebeu.
Trancado no banheiro deu vontade de cantar e cantar. E cantou pra uma plateia invisível dele próprio.


(Rod.Arcadia)












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