A
música já não tocava mais. Os companheiros sentados, se encolhiam
do frio e quando abria a porta, os olhos desenhavam pavor. No balcão
a mulher de quarenta anos, magra, com o cigarro na boca brincava com
o dedo dentro do copo de cerveja quente. Fazia círculos e quem sabe
pensando em algo ou em alguém.
O
balconista cansado conferia no celular algo interessante nas
mensagens, não queria mais servir ninguém, queria que a hora
chegasse pra correr nos braços do namorado de vinte e dois anos.
Enviou a mensagem avisando que logo estaria em casa.
Os
companheiros encolhidos discutiam Descartes que sem querer
encontraram num desses lugares obscuros que desconhecemos. Se é que
conheciam as teorias do famoso filósofo que pouco tinha de
interesse. Ninguém entendia o que o outro falava.
Encostado
no balcão com último resto de uísque ele tentava pensar. Entrou
fazem três horas, não conversou, apenas pediu a bebida. Se sentia
desconfortado quando a porta abria.
Não
havia necessidades de estarem dentro, mas algo os fazia permanecer.
Não era o frio, nem a música. O lugar possuía uma magia especial,
uma fuga para o que há de pior do outro lado.
O
balconista contente verificou o relógio pendurado. O expediente se
encerrou. Entrou no quartinho para se trocar, que bom, ansioso,
pensava no namorado, de abraçá-lo, de ser amado.
Ao
vestir, era outro homem. Bem bonito, simpático, cabelo curto e
escuro liso. Enviou outra mensagem avisando que o expediente
terminou. Vestiu a jaqueta de couro e olhou para aquela gente. Tinha
que avisar que o lugar estava fechando.
Os
companheiros cada um contava uma farsante história. Sereias em
alto-mar, ninfas apaixonantes, amantes profissionais. Cada causo,
fantasia melhor que a outra. Os exageros nas bocas bêbadas e
cuspidas, parecia um campeonato.
A
cerveja dormia quente e nenhuma vontade de beber passou pela cabeça.
Nem que estivessem afim de embora.
Tinha
pena de colocar na boca o último vestígio da cerveja. Não possuía
o sabor de antes. Sem graça, sem gosto. A mulher de quarenta anos de
olhos perdidos, distinguia nada a frente. Baixou a cabeça, tentou
saber como veio parar ali, quem deixou pra trás. A cabeça doía,
era demais, forçado e doloroso. Levou a cerveja a boca para no meio
do trajeto desistir. Voltou a fazer círculos na bebida.
O
estranho ouvia a algazarra dos companheiros. Sabia porque estava, o
motivo, a razão, a preocupação. Tarde, olhou o relógio. Tarde pra
arrumar o que deixou, tinha medo, de não querer ver o que há do
outro lado. Engoliu um pouco o uísque. Parecia um parasita sentado e
acomodado.
O
balconista com o ar confiante, fecharia o estabelecimento e estava se
lixando para os visitantes. Não estragaria o momento por nada.
Ninguém o reparou que após mudar não era mais balconista e sim um
rapaz normal.
A
nostalgia da mulher de quarenta anos lhe apertou o coração. O que
ela faria numa hora dessas. Teria filhos, esposo? Morava nas ruas? O
rosto seco e sem brilho contrastava com o ambiente. Decidiu que não
era pra ele.
O
estranho o olhou buscando respostas. Quem seria? Pensou afinal. A
mente divagava lerdamente. Não recordava do rapaz com feições
belas atrás do balcão. Quem seria? O balconista deu um sorrisinho
pra disfarçar. Pensou nos braços aconchegantes do namorado.
Os
companheiros mal sabiam o que falavam. Também estranharam o
balconista. Continuaram cada um dizendo a própria bobagem.
Era
chegado a hora. Sentiu um pouco de remorso. Porem, tinha pressa e se
demorasse, perderia o ônibus.
– O
bar fechou, senhora e senhores.
Foi
como se o tempo parasse. Foi como se estivesse dito o que não
deveria dizer. Não viu reação, chiado algum. O que pensam que
estão fazendo? Pensou. Irritado por não ser escutado. Repetiu.
Usando potência na voz.
– O
bar fechou, senhora e senhores!
Sim.
Isso. A voz ecoou no silencio do ambiente. Finalmente estaria livre
para o namorado de vinte e dois anos.
O
estranho não descobrindo quem seria o rapaz imaginou em partir.
Partir pra onde? Se pedisse, pediria pra pousar no chão do bar.
Exatamente, ficaria seguro e protegido. Além disso, ninguém o
procuraria, nem a friagem do frio.
A
mulher de quarenta anos não tinha noção do que estava acontecendo.
Esboçou pronunciar, a palavra morria na boca. A cerveja perdeu o
sentido. Queria ficar. Queria morar ali e não olhar lá fora nunca
mais.
Os
companheiros surpresos pelo aviso. Instantes a entender, cabeças em
direção ao balconista, logo retornaram a falação sem sentido,
cada um com uma conversa diferente da outra.
O
balconista se irritou, pensou em gritar, falar palavrão, colocar
essa gente pra fora. Daí notou que era um homem sozinho contra
todos.
– Tenho
mais nada pra fazer aqui. Dane-se, que se matem!
Tinha
chave da porta, sairia e fecharia o estabelecimento, que a mão
divina cuide dos pobres coitados.
Vestiu
as luvas, retirou o celular, pensou... desistiu. Não precisava
averiguar, de manhã encontraria o pessoal adormecidos, preparados
para mais um dia e estaria preparado para servi-los.
Abriu
a porta, o vento frio o apanhou. Houve protesto, não deu bola. Saiu,
como estava fria a noite. Fechou a porta atrás de si. Passou a
chave. Virou a placa de aberto pra fechado. Colocou as mãos no bolso
da jaqueta a passos apressados andou ao ponto de ônibus mais
próximo.
…
O
que fazia os companheiros de não querer encarar o mundo lá fora?
Esqueceram da vida, apagaram preocupações, sacrificaram segredos.
Quem os conhecem reconhece seus pecados e culpas. Cada um tem a
própria história que nem o mais bravo conseguiria desvendar.
Oito
horas atrás. A mulher de quarenta anos discutiu com o amante.
Seu
bairro ficava uma hora de distancia. Tinha medo de caminhar, alguém
a avisou que era perigoso, pessoas perigosas andavam por ali.
Apressou os passos, e não havia ninguém, pois quem encararia o
frio que machucava a pele como agulha? Apressou para também escapar
da friagem, porém o medo dominava.
Aliviou
quando avistou o ponto de ônibus e nele aguardando seis homens. Seis
homens rindo, falando alto. Bons companheiros, pensou. E se sentiu
com sorte.
Finalmente
no ponto olhou os homens e eles a encararam, mas a encararam com
desejo. Sim, a desejaram, com o tempo gelado, morto e cinza. Mãos
seguraram, outras rasgaram a roupa e gargalhando começaram um a um.
Deixaram-na
nua no chão. Chorando e tremendo desorientada andou, o rosto
avermelhado. Andou tanto que não reconhecia onde se encontrava, que
havia movimentação, luzes, música, agitação. A mulher de
quarenta anos entrou no local mais próximo.
O
bar vazio, olhou para o balconista, um rapaz de feições bonitas.
Pediu cerveja. A mão tremia, o balconista disfarçou o olhar. Ele
abriu a garrafa, depositou a bebida no copo, ela bebeu. Um alívio
percorreu o corpo. A música ainda tocava e era linda e flutuou ao
compasso da melodia.
Um
tempo depois os companheiros na maior algazarra entraram. Discutiam
futebol, mulher e futilidades. Da mesa gritaram pedindo cerveja.
Alegres e brincalhões fizeram chacota com o balconista que não
gostou. Pediram pra música ser trocada e foram atendidos. Queriam
farra, festa, falar bobagens e coisas serias, queriam ser excluídos
do mundo.
Por
fim, o estranho. E quem seria senão o amante da mulher de quarenta
anos.
Sim.
As peças preparadas e concluídas. Desfecho da maldade escancarada
aos olhos de quem não enxergam.
Horas
atrás discutiu com a amante. Quase a agrediu. Ela disse que ia
embora e foi. Ficou no vazio, no arrependimento, amava-a. Não queria
que terminasse o caso numa discussão estúpida. Correu pra trazê-la
de volta. Daria carinho, faria amor, falaria para viverem juntos,
morar. Correu, infelizmente sem sorte.
Os
companheiros passaram por ele, mal o perceberam. Derrotado, viu a
felicidade se apagar. Sentiu-se como o pior homem.
Dentro
do bar, ninguém saberia quem seriam os personagens. Pois cada um
tinha a própria prisão.
…
A
chave virou duas vezes antes de abrir. De frente sentado de costas no
sofá com a televisão ligada havia uma pessoa. Com toda discrição
fechou a porta e trancou. Retirou a jaqueta e as luvas. Lançou-os na
poltrona próxima. Se aproximou perto da pessoa que não proferiu
reação.
– Olá,
sentiu minha demora? Desculpe, hoje foi barra naquele lugar. Quanta
gente ignorante, grossa e burra. Só pensava em você, sabia? É o
meu protetor pra suportar, se eu não o tivesse, teria entregado os
pontos há muito tempo. Vou tomar banho, tirar o peso do corpo e
preparar o jantar. Já volto, meu docinho.
Beijou
o namorado que nem se mexeu.
Entrou
no chuveiro. A água quente era o remédio para todos os males
imundos da sociedade. Não se sentiria culpado pela demora, decidiu
limpar a sujeira impregnada na alma.
O
namorado imóvel parecia morto. Talvez a alma se foi há muito tempo,
ficando a carcaça e que o infeliz do companheiro não percebeu.
Trancado
no banheiro deu vontade de cantar e cantar. E cantou pra uma plateia
invisível dele próprio.
(Rod.Arcadia)
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