domingo, 11 de maio de 2014

O Grito








Roberto acordou com o grito. Não sabe de onde veio. Isso vem ocorrendo há trinta dias.


Tinha sido na terça-feira de noite, antes das vinte e uma horas. Voltava da casa do Rodolfo. Foi a convite de uma velha amiga de escola. Aproveitou os comes e bebes. Mulheres desfilando belezas e formosuras, além da namorada do dono da casa, moça atraente que chamava atenção dos homens.


Não gostou e nem se agradou do dono da casa. Que ria escandalosamente, gestos com os braços, piadas sem tom. Ficara boquiaberto com a falsidade dos convidados, que riam de qualquer assunto que Rodolfo falava e que possuía uma péssima interpretação.


Roberto ficou à vontade. Bebendo champanhe e beliscando uns canapés, casquinhas de siris e pequenas porções que ele não gostava tanto. Sem atrair os olhares, perambulava pela sala arejada, anotando com olhar crítico a decoração retrô de mal gosto.


Sua amiga, que havia dado o convite, encontrava-se em outro evento. Era a garota dos eventos na cidade, onde umas clicadas aqui e ali, em redes sociais e notícias na alta sociedade, se achava a Liz Taylor tupiniquim. Roberto se desagradava das loucuras da garota. Nunca aceitou o jeito de se demonstrar ou se aparecer com uma ridícula caipira famosa do interior. E detestava os que apoiavam, como se fosse divertido comentar um espirro extravagante dela.


Ele bebia e comia de graça, rindo do dono e reparando que o rapaz, era um arrogante filho da mãe.


Uma hora depois, os puxa-sacos raptaram Rodolfo para uma salinha. Praticamente uma partida de póquer. Ou um planejamento de dizimação da humanidade. Nunca se sabe o que esses endinheirados mimados pensam e aprendem por aí, não é de se duvidar que saiam admirando a desgraça dos coitados.


Roberto sentira uma pontinha de inveja. Pensara em fazer amizade fingida com Rodolfo. Muito bem. Tinha ouvidos lavados e limpos, não era expert em arte, filosofia, politica e conspirações de dominação global. O que não era necessário para conquistar um cidadão, que vive de festas com gente gargalhando das piadas sem graça dele.
– Te conheço?
Se assustou ao escutar a voz atrás dele. E quando virou, se assustou mais ainda.


A resposta demorou preciosos segundos. Ficara estudando a maneira de agir. Não era fácil, na sua frente, a namorada do Rodolfo.
– Acho que não. – Respondeu com uma cara de pau séria, reparando no decote extravagante que ela exibia.
– Desconfiei desde que o vi. E reparei que não entrou acompanhado. – Disse, encarando como uma fiscalizadora maliciosa.
– Uma amiga deu-me o convite. Está bonito, estou gostando de tudo.
– E quem seria a amiga generosa? E por favor, sem hipocrisia. De que merda acha que aqui está bom? Admito as falsidades dos amigos de Rodolfo, umas bostas saídas do rabo dele. Mas, de desconhecidos, não soa muito legal, não.
E não queria se encantar pela moça. Loira, de olhos verdes, usando decote numa blusinha preta com babado, lábios carnudos e o famoso batom vermelho.
– Minha amiga se chama Rose. – Falou.
– Rose… Tentando lembrar quem seria… Ah, a menina caipira famosa?
– Sim. Ela mesma.


Rodolfo se envergonhou ao perceber que era amigo de uma amiga ridiculamente falada.
– Acompanha-me numa taça de champanhe? Não é bom, numa reunião, uma dama beber e conversar com um cavalheiro, sem nenhuma bebida entre eles.


Roberto aceitou acompanhá-la e a falar de coisas não chatas. O clima não se limitava de assuntos sem interesses. Não retirava a atenção dos olhos verdes dela. Seguia a movimentação da boca. A expressão irônica, critica e maldosa e sem remorso.
– Espere. Juro que não demoro. – Disse ela.
– Ei, onde vai?


Não queria largar. Parecia que sua metade, partia-se com o afastamento dela. Talvez uma dependência estranha que ele não compreendia. E que não se acostumou a sentir.


Ficou a ver os convidados. Uma música preenchia o ar, e a curiosidade de saber o que rolava na outra sala, o deixara nervoso.


Ela voltou de roupa nova. Estava de vestido curto verde-abacate. Seu corpo se desenhava linha por linha. Pegou na mão dele, e sem se importar com o pessoal, o puxou firme.
– Vem! – O perfume deixava rastros por onde passavam.


No fim, entraram no quarto. Envolvido, permitiu que prosseguisse e lançou um que se dane. Por dentro, gargalhou de Rodolfo. Era o maioral da reunião.


E tudo feito em pé. Já que ela preferiu e que não queria, desarrumar a cama.


Quando voltaram, a festa continuava. O sumiço não chamou a atenção de ninguém, e Rodolfo havia encerrado a partida de póquer. Bebia e ria, escancarando sua boca exagerada.


A namorada levou Roberto no lugar que se encontrava Rodolfo. Ela beijou o namorado e ele sem entender, reparou que não conhecia o rapaz que a moça trouxera.
– Quem é ele? – Perguntou.
– Um desconhecido, que encontrei perdido. – Respondeu a loira, abraçando carinhosamente o namorado.
– Seja bem-vindo, moço desconhecido. Sinceramente, não te conheço de nenhum lugar. – Disse Rodolfo, beliscando um pedaço de queijo prato em cubinho.
– Ganhei o convite de uma amiga. O nome dela é Rose. É um prazer conhecê-lo.


Roberto estendeu a mão para Rodolfo, que olhou e nem retribuiu a gentileza.


– Humm, Rose? Que Rose? Eu conheço alguma Rose, minha lindinha?
– Aquela menina caipira, esqueceu é?
– Ah, essa? Ela é muito conhecida na região.


Soltou uma tremenda gargalhada, rindo da garota. Os puxa-sacos o acompanharam e Rodolfo se sentiu mal. Sentia uma pontada no peito ao saber que conhecia uma amiga caipira famosa. Só não aprovou a risada do babaca. Desejava jogar na cara, que havia transado com a namorada, não na cama, e em pé. Mas, Rodolfo, era uma bosta, que merecia porrada pra aprender a ser gente.


– Desculpa-me. Juro que não fiz por mal. – Disse Rodolfo para Roberto.
– Esquenta não. Não ligo pra isso. – Respondeu Roberto. Porém, por dentro, queria dizer umas boas verdades para o playboyzinho.
– Meu tempo por aqui se encerrou. – Disse Roberto olhando diretamente para a loira, que deixou de abraçar o namorado playboy.
– Que isso, mocinho. Falta de delicadeza, deixar a dama sozinha. – Disse a loira ao se aproximar perto de Roberto.
– Minha lindinha, não é merecedora de solidão. – Completou Rodolfo, mexendo nos cabelos lisos pretos.
– Tenho compromisso na parte da manhã. – Explicou Roberto.
– Que lástima, levantar cedo. Isso não é vida, é sofrimento. – Rodolfo soltou um risinho irônico e com olhar malicioso, encarou Roberto.
– Eu te acompanho, até lá fora. – Disse a moça, tomando a dianteira.
– Esteja convidado a retornar, meu caro, rapaz. – Disse Rodolfo se ajeitando e alisando os cabelos.
Bastaria levar a loira. Terminar o que começara. Na casa dele, a cama era livre. Só não estava em boas condições. Podia-se realizar uma transa gostosa. Sim, levaria ela, passariam a noite. E o que importava para ele, ela e o bobo do Rodolfo? Nem sentiria a falta da namorada. Haveria gente rindo, fingindo acreditar em tudo que recitasse. Esqueceria até que namorava, que a garota nem seria dele.


– E então, me largará sozinha?
– Você tem o namorado. – Disse Roberto.
– Rodolfo não necessita de mim lá dentro. Enquanto houver merdas aos seus pés, serei uma invisível. Isso chateia, leva-me ao tédio sabia? Mas vá, mesmo eu não querendo. Não sou de prender, não faz meu tipo de jogo.


Houve um rápido selinho pra selar a despedida e Roberto tomou o caminho de casa. E tudo aconteceu há trinta dias.


E nisso, entrou o grito.


Roberto tinha se arrumado para deitar, quando o grito surgiu. Estridente e feminino. Rasgado e de tom agudo. Berro de mulher, não havia dúvidas e incertezas.


Aguardou o movimento do prédio, mas nada escutou. Parecia que dormiam, apesar das vinte e duas horas. Não, nenhum ruido, nenhuma movimentação dos vizinhos e andares acima e abaixo.


E o grito continuava. Alto. O importante era que não irritava, bem calmo, e que não demonstrava desespero.


No dia seguinte, Roberto comentou com o síndico, que deu a entender que não escutara. Com o zelador, o olhar de justiça do velho cismado, retirou a vontade de expandir a conversa. O velho só aliviou quando começaram a falar do time do coração dele. Com uma total cautela de cuidados.


E o grito, que no começo não incomodava, passados os dias, não apontava nenhuma admiração em Roberto. O bendito vinha nas horas inconvenientes, que qualquer um reclamaria.


E foi o que Roberto fez e ninguém o levou a sério, jogando indiretas de que não estava bem de saúde. O que o deixara furioso.


O grito fizera perder a concentração. No trabalho, as conversas com os amigos perdiam-se em esquecimentos e sonolências. Da amiga caipira famosa, mal prestava atenção na espontaneidade que ela tratava dos eventos na cidade. A voz dela o perturbava. Mas era o grito, que não cessava de martelar como uma hipnose desconcertante.


Não deu outra, com raiva e determinado, decidiu combater o grito misterioso.


Se reforçou num pesado café da manhã. Como era dia de folga, aproveitou pra dormir mais. Uma meia hora e pouquinho por aí. Se vestiu, penteou os cabelos, calçou o tênis Adidas e saiu em missão.


Naturalmente que se fosse contar ou cochichasse com algum morador, a resposta geraria protesto e renúncia. Por desconfiar, propôs a si mesmo calar-se, sem alardear o síndico e o velho zelador.


Começara pelos andares de baixo, batendo e batendo nos dormitórios. Ele não negava o constrangimento, de entrar e vasculhar e desvendar o mistério.


Fora a vergonha dos moradores. Teve gente que socou a porta e senhoras assanhadas tentando ganhar alguma vantagem extra. O resultado foi mero desperdício.
E o síndico estivera a bater à porta de Roberto. Que falou um monte, de palavras cuspidas, de receber reclamações. Que isso não se repetisse. Disse o homem no final.


Na parte da tarde, pelas quinze horas, o grito voltou do jeito que apareceu.


Roberto abriu a porta, com a intensão de encontrar uma pessoa andando no corredor. Não encontrou ninguém.


O grito continuava no mesmo nível de altura. Então lembrou de que faltara um número, no andar de cima. Esquecera e era o único que faltava dos dormitórios.
Subiu três lotes de escadas correndo. Seu folego estava bem. Recordou que era bom não ser fumante, não faltava energia. E o grito emitia o barulho estridente. Como nenhum morador reclamou do berro? Finalmente na porta. Número par. Um número par qualquer. O morador, um senhor de setenta anos, vivendo sozinho. Uma morena de trinta anos, pagara adiantado o valor do dormitório. Não se sabe, se era filha ou parenta. Viera do interior, da fronteira do Paraná.


Ali estava o grito. Roberto apertou a campainha demoradamente. Como não tivera resposta, batera na porta. Fraco, forte, exagerado. Nada. Chamou o síndico.


O homenzinho veio, batendo o pé, reclamando como um rádio velho. Chamou a atenção do pessoal, pra reclamarem com Roberto, de atrapalhar o sossego e a paz de todos. Roberto pediu que o síndico abrisse a porta. E assim o fez.


Ao abrir, o senhor, de estatura média, careca e de óculos sentado numa poltrona solitária. De olhos fechados e cabeça baixa, dormia. Morto. O ambiente fedia, fedia demais. A maioria correu desesperada e com náusea.


O grito silenciou. Um aparelho de som, programado para acionar nos horários determinados. Roberto lançou o objeto ao chão, que espatifou sem piedade. O síndico reclamou do ato impulsivo. Seria a prova. No final, concordou com o rapaz, falando bem dele para a polícia. Caso encerrado.


Dois dias depois, de noite, às vinte e uma horas, uma visita bateu no número de Roberto.


Tinha esquecido dela, do corpo, dos cabelos longos, lábios carnudos, de tudo de bom que havia. A namorada do Rodolfo. De vestido branco curto. Batom rosa provocante.


– Sua amiga Rose que passou o endereço. Tadinha, preocupada com você. Acreditaria que também senti o mesmo? – Disse mostrando os olhos verdes iluminados.
– Sim, acredito. Sinceramente estou bem. Foi apenas um probleminha que se resolveu.
– Ah, que bom que deu certo. Não falaremos de problemas. Nem os teus e nem dos meus.


Enlaçou os braços em Roberto, que surpreso, permitiu se levar. E ela, descobrindo a abertura, aproximou a sua boca na dele.
– Muita saudade tua, sabia? – Disse, a voz sedutora e provocadora.
– Onde quer chegar? E Rodolfo?
– Ah, meu lindo desconhecido. Esquecemos essa parte da minha vida. Continuemos o que paramos naquele dia, e que as horas voam e voam.


Ah, que se dane! A loira era tudo de bom. Se soltou, não estava mais contraído, deixou o ritmo seguir o curso. Por dentro, gargalhava, gargalhava de tudo e de todos. Possuía o grito mais pulsante e vitorioso da cidade. E assim se sucedeu.


(Rod. Arcadia)







































quinta-feira, 10 de abril de 2014

Desatando Laços







Ela estava trinta minutos atrasada, como sempre fazia, nesses nove meses de idas e vindas.
Para passar o tempo, ele acendeu um cigarro. Não achava graça em cigarros, o maço, dava-lhe um pouco de superioridade fingida. Tragou, a fumaça em círculos, dançou no ar. Não estava nervoso, no banco sentado, encostou as costas e as relaxou. Em seguida, cruzou as pernas.
Quis comprar o jornal de um negrinho magrinho, que passava por ali. Lembrou que não tinha nenhum trocado no bolso. Tragou e soltou a fumaça.
Avistou-a vindo, distraidamente, os cabelos soltos, balançavam com seu ritmo. Ele a olhava, seus cinquenta anos, lhe pareciam roubados pelos vinte. Ele se sentia um velho, mesmo com seus cinquenta e quatro anos, mas de velho chato e rabugento, não possuía nada.
Descruzou as pernas e o cigarro havia se apagado, alguns minutos antes.
Ela sentou do lado direito dele, era sempre assim, nesses nove meses. Sentava-se em silêncio, com o rosto reto, reparando nos movimentos à sua frente. Era um lindo ritual que ele admirava e respeitava, impacientemente, sem interferir.
Não havia passado na venda para trazer balas de goma. Gostava de comê-las, enquanto a esperava falar. Preferiu entrar no oceano do silêncio, calmamente paciente.
Então, ela finalmente se pronunciou e ele como de costume, contou os minutos, e se sentiu com pena de não ter trazido as balas de goma. Isso, não importava muito.
– Como vai, você? – Ela começava assim, nove meses, com a mesma pergunta.
– Sempre bem. – E ele respondia com a mesma resposta, sincero, que ela achava, olhando em seu rosto. Pois tinha cisma de que encontraria, um esboço de inverdade.
– Não me parece. – Ela disse, examinando-o.
– Hã? Como assim?
– Percebe-se, que tem algo diferente em você, não sei o que é, mas tem.
– Bobagem. Besteira da tua cabeça.
– Em nove meses, as coisas mudam, meu caro. – Ela abriu um sorriso sacana.
– Acho que sim, mesmo não acreditando.
– E como está, Amanda?
– Muito bem, estudando muito e encontrando espaço pra namorar. Precisava ver como está bonita, puxou a mãe.
– Ah, que bom, né? Fico feliz ouvindo isso. – Disse um tanto triste, um tanto sem graça.
Ele percebeu o jeito que ela ficou e tentou consertar.
– Pena que não trouxe comigo uma foto dela, pra você ver e…
– Nem era necessário, só queria saber se estava bem.
Ele se sentiu mal, que burrada ter puxado o assunto da foto, falar da garota. Quem quis saber, foi ela, não tinha como desviar da conversa. no fim, se desculpou.
– Perdão.
– Esquece. Estou bem.
Ela ficou calada, numa expressão de rosto vazio, fora do ar, por assim, dizer. Estava pensando ou sua mente encontrava-se vazia? Quem imaginaria o que se passava nela?
Ele pensou em fumar mais um cigarro, mas seria deselegante lançar fumaça insuportável do lado de uma mulher. Cruzou as mãos e a esperou, sem pensar em nada.
– Queria andar por aí. – Ela disse, ainda olhando reto para ninguém na sua direção.
– Por aí, onde?
– Sorveteria, por exemplo.
– Sabe que é impossível. Bem que eu pudesse, como há alguns anos, te levar pra qualquer lugar bem bonito.
– Sim. Que saudade de sorvete de casquinha…
– Sabor misto. Era o que mais gostava.
– E ainda, gosto. – Riu.
Mais uma vez, o negrinho magrinho vendendo jornal apareceu, desta vez, oferecendo.
– Vai um jornal aí, moço?
– Hoje não, mas obrigado.
E o negrinho foi andando, anunciando alto uma notícia trágica pra chamar a atenção das pessoas.
– Ele nem sequer, reparou ou me viu. – Disse ela desapontada.
– Ora, que besteira. Nunca ligou nesses detalhes. Em todos esses meses.
– Porque nunca reclamei, pra não te encher com besteiras, como acabou de dizer.
Ele percebeu que ela estava distante, mais triste, não normal, como nas outras vezes que se viram. Teve dó dela, de não poder fazer nada e a deixá-la um pouco alegre. De sair, pegar na mão e levá-la num parque que abriu algumas semanas atrás no centro da cidade. Sentiu-se mal, talvez, há alguns anos, se existissem parques ou outras coisas românticas para casais, eles caminhariam de mãos dadas, pipocas, refrigerantes, salgadinhos, grama para deitar, brisa tocando seus rostos e quem sabe, ouvir Vinícius e Toquinho, Jovem Guarda, um pouco dos Stones. Coisas que adoravam e se combinavam, até nos olhos, ambos azuis, ambos de céus combinados. Infelizmente, os tempos eram outro. Ela estava longe dele e ele longe dela. O que restou ou sobrou, são esses encontros de nove em nove meses que nenhum dos dois, tinham coragem de falar que sentira saudade do outro.
– Tenho algo a dizer. – Disse ela, quebrando o silêncio, entre os dois.
– Diga.
Primeiramente, ela ficou de frente para ele, numa forma de encará-lo e olhar no fundo dos olhos dele.
– É melhor a gente não se vê, nunca mais. – Disse.
Ele se assustou, mas manteve-se, firme.
– Mas, que isso agora?
– Chega uma certa parte da vida, que precisamos descansar o passado e deixar o presente prevalecer.
– Mas eu não…
– Não querido, não diga nada. Com o tempo, entenderá. Temos que nos separar, cada um ficando no seu canto. Que seja assim e assim, será. – Disse ela alisando de leve o rosto dele.
Ele virou-se, para olhar um jovem casal com sua menina. Ambos a seguravam pela mão. Uma pomba veio pousar no meio da caminhada da bonita família, havia migalhas de pipoca de alguém que passou comendo por ali. A menina espantou com seu chute a ave, que saiu voando, indo na direção de um antigo prédio abandonado.
O negrinho magrinho vinha sem os jornais, trazia um pacote de salgadinhos. Usava um boné que pareceu novo, andava de um jeito largado, diferente de quando trabalhava, onde a postura, era mais elegante.
Por fim, não desejava que ficassem no clima chato que se desenvolveu e então, ele voltou a falar com ela:
– Tenho que dizer algo.
– Fale. – Disse ela, prestando atenção nele.
– Conheci uma outra mulher, há dois meses e ontem, oficializamos o namoro. Ela é doze anos mais nova do que eu e não sei, o que dizer…
– Ah… que bom. Você merece, meu querido. Merece ser feliz…
– Amanda tem me dado apoio, sem ela, acho que não entraria no relacionamento.
– Acho que com essa novidade, desamarramos o laço dos nossos encontros. – Disse ela convicta.
– Se é dessa forma que tem que ser… tudo bem.
– E haveria, outra solução? – Ela levantou e saiu andando.
– Ei! Aonde vai? – Disse estranhando a atitude dela.
Ela parou e olhando para trás, respondeu:
– Estou partindo, querido. Sabe que detesto despedidas emocionadas, até porque, odeio momentos emocionantes. Fique bem, dê um beijo na Amanda por mim, diz que a amo muito e cuide bem dessa nova pessoa que entrou na tua vida. Adeus, adeus pra nunca mais…
– Ei, espera, espera!
Ela nem quis parar, voltou a andar em passos normais. Ele levantou do banco num gesto impulsivo, esticando os braços perdidamente e em vão.
Numa certa distancia, de encontro as pessoas que vinham do lado oposto, ela foi desaparecendo e quando se deu por si, não havia mais vestígios dela nessa realidade.
Ele sentou frustrado. Além disso, era um homem completamente sem rumo. Então, tudo acabou. Tudo acabou numa forma estranha e vazia. Não tinha coragem de sair dali, paralisado, chorou por dentro.


Era quase de noitinha quando entrou na casa da namorada. Essa, lhe deu um beijo no rosto e pediu para ele se sentar e se ajeitar no sofá que logo viria fazer companhia.
– Preparando um bolo pra encomenda. – Foi o que ela disse.
Ele sentou. Observou o filho dela, de dez anos, brincando com seus bonequinhos no carpete vermelho no meio da sala.
Antes de chegar, foi embora do encontro melancólico, saiu a andar e ao encontrar a lata de lixo, não pensou duas vezes, lançou o maço de cigarros dentro e com ele, foi junto o isqueiro. Andou mais alguns pedaços, até encontrar um ponto de ônibus.
– Pronto. Agora, terá minha atenção. – Disse a namorada, voltando da cozinha.
A namorada era loira, rechonchuda, sem feições elegantes, cheirava a perfume de supermercado. Os cabelos, com cachinhos, tinha a cor desbotada que necessitava de uma nova aparência. Também pudera, não carecia de tempo e hora para o salão de beleza, muito menos, para manicure. As unhas, nem pareciam de uma dama, eram ásperas, secas, estragadas com detergentes. E o que tinha de mais importante para ele, era o sentimento que nutria nela. Simples, feliz, alegria de menina, que ele não encontrava há anos. Com ela, a liberdade seria plena.
– O que fez de bom, hoje? – Ela perguntou, ajeitando a gola da camisa dele que estava bagunçada.
– Fui enterrar o passado. – Respondeu.
– E tivera sucesso?
– Não sei. Sinceramente não sei. – Respondeu ele, sem jeito.
– Então, relaxe. Estou aqui pra cuidar de você.
E foi lhe fazendo uma espécie de massagem nas costas dele, enquanto o menino, brincava com um caminhãozinho de plástico num mundinho só dele.
– Falou com Amanda? – Ela perguntou, ajeitando-se no peito dele e pegando o controle remoto para mexer na televisão.
– Ainda não. Mais tarde, dou um oi e uma boa noite.
Estava feliz? Sim estava. Agora tinha a oportunidade de realizar o que deixou ou não fez no passado. Pipoca, sorvete de casquinha, doces, ouvir Vinícius e Toquinho. Mãos dadas e seguras, carinho que ele esqueceu lá atrás, sorrisos bobos na cara. Com cinquenta e quatro anos tinha muita coragem de querer se sentir jovem, bravo e saudável, disposto a tudo que as divinas glórias lhe abençoavam.
– Sábado, vamos eu, você e Leandrinho no parque novo que abriu. Depois, tomar sorvete de casquinha. Gosta de qual sabor?
– Misto. – Ela respondeu, se ajeitando mais ainda no peito dele.
Ele afagava os cabelos dela, prestando atenção na televisão, enquanto o menino no seu mundinho particular, era um escritor de grandiosas estórias.


(Rod.Arcadia)

























quarta-feira, 9 de abril de 2014

A Janela Aberta














Ultimo Dia: Prólogo.




Olhou na direção da janela aberta. Na direção, que ele se encontrava.
A menina levantou e caminhou. Ele ficou parado e surpreso, sem se mexer. Ela andou ao encontro dele, rostinho sereno, cabelos loiros escorridos. A vela queimava, e à chama ardente, iluminava. A lufada de frio, invadia o pequeno quarto. Com coragem, a menina, se aproximou.




Primeiro Dia:





A criança acende todos os dias uma vela.

Ajoelhou, juntou as mãozinhas, fechou os olhos bonitos que ganhou, e rezou baixinho.

Primeiro, para o menino Jesus, depois, Maria e José. Rezou para o Papai do céu, pra iluminar as vidas da mamãe e do irmão. Terminado, pediu aos anjinhos, cuidarem dela e começou outra oração, a pedir, e a rezar, com devoção.
Sempre ali, a observar a menina. Sempre vigiou, ouvindo a voz da pequena. Ele não se moveu, estava silencioso, no seu cantinho intimo.

Às vezes, o pensamento escapava, fazendo com que se perdesse, e demorasse a compreender em qual parte, encontrava-se a oração.
Ficou calado, pra não atrapalhar. De vez em quando, olhava, para que pudesse abrir um riso tímido, para a menina.
Tinha sete anos, a menina. O irmão, oito. A mãe, com os nervos à flor da pele. Era bastante estourada, uma bomba pronta, pra explodir.
Nos últimos dias, esteve muito nervosa. A pressão chegou lá no bico. Tiveram que levá-la para o hospital. Agora, precisa tomar de seis em seis horas o comprimido, para manter a pressão equilibrada.
A reza acabou. Fizera os pedidos e os agradecimentos que precisou.

Ficou de pé, espreguiçou o seu magro corpinho. O menino entrou. Ela o olhou. Nada falou. Ele pegou o caderno abandonado na cama, e puxou o cabelo dela.
– Ai!
A vela queimava. Descobriu com a mãe, que precisava ser apagada sozinha. Aprendeu desde pequena, a avó, ainda viva.
– Senão, nossos pedidos, orações e proteções, não são atendidos. – Explicou ela.

E com a explicação, deixava-se derreter a vela. Concluiu que desse modo, chegaria fácil, no ouvido do Papai do céu.
O menino, não era pra rezas e orações. Oficio, somente da menina. A mãe não tinha tempo, ocupava seus afazeres, com problemas da casa.
A mãe chegou. Escutando o grito da menina. Lançou uma cara feia, para o menino.
– Que fez com sua irmã? – Perguntou.
– Nada não. Ela que faz graça.
– Puxou meu cabelo! – A menina dedurou.

A mãe nem falou. Havia fumaça, saindo da cabeça dela.

O menino abaixou as orelhas e saiu de mansinho. Escapou dali, indo para a sala.
– Vamos. Isso passa. – Disse, ao colocar a mão no cabelo loiro da
menina.
E ali quieto, e sem se mover, via as duas. A mulher o encarou. Pensou que deveria falar com ela, de que não precisava ficar brava, com o menino.
– Vamos. Feche o quarto. Daqui a pouco, à vela,
se apaga. – Ela disse, e não parava de encará-lo.
E ele também saiu quietinho.

Seguiu-as,
para a sala. Andou cauteloso. Não quis chamar atenção. Examinou o ambiente da casa, um tanto escura, com mínima luminosidade vinda das lâmpadas.
Na sala, o garoto se escondeu dentro do caderno. A televisão, estava ligada na novela. Horário das dezoito horas. Ao passar a menina estapeou a cabeça do menino.
– Ai, mãe! – Ele chiou.
– Silêncio! – Ordenou, sem interromper a caminhada. Sentou na poltrona, que era só dela, de posição melhor para assistir TV. A menina sentou na poltrona maior, do lado do menino.
– Quem começou a me bater foi você. – Disse a menina.
– Calem a boca. Quero ver minha novela sem nenhum pio. – Falou a mulher, lançando um olhar furioso para os dois.

Timidamente, ele sentou numa pequena vaga que encontrou. Estava bem desconfortável, difícil de se acomodar.

Posição ruim, não conseguia assistir a TV. Restou ouvir, o que à novela narrava.
Na decoração, pendurado na parede, o quadro do Preto Velho, o outro de Iemanjá e um de São Jorge, matando o dragão. Havia o altarzinho, para uma pequena imagem, de outro Preto Velho, enfeitado de fitas vermelhas, amarelas, brancas e verdes.
Atraiu-o para lá. Tocar a imagem ou ficar, apenas próximo.
Esboçou uma saída. Olhou pra mulher, que se encontrava, distraída.
Levantou, e andou de mansinho.
– Não vá, se afasta daí! – Gritou a mãe.
Com medo, voltou no seu cantinho. Assustado, percebeu que não foi com ele, que ela tinha gritado. Constrangido, se encolheu. Não falou palavra alguma.
– Idiota. Burra. – A mulher xing
ava a personagem da novela.
– Ai! – Reclamou a menina.

O menino beliscou disfarçadamente a menina. Os dois entraram numa briga. Tapas e mais tapas.
– Ei, ei, ei! Podem, parar já! – Ordenou a mãe, que fez os dois, se encolherem. – Saco!

No quarto, a vela estava derretida. Observou a menina arrumar a cama dela. O menino, arrumou apressadamente a sua cama, e num impulso, pulou e deitou nela. Antes de deitar, a menina, ajoelhou-se, colocou os braços em cima do colchão e pediu proteção, ao anjo da guarda. Rezou o Pai-nosso, e em seguida, deitou e se cobriu, com o cobertor.
A mãe entrou. Camisola cor-de-rosa. Olhou para ele. Não disse nada.
Beijou os filhos.
– Durmam bem.
– Você também, mamãe. – Responderam.
O dia terminou.





Segundo Dia:





Levantaram cedo. Tomaram café, vestiram roupas de sair e foram as compras.
Compraram mais baboseiras, do que as necessidades. As crianças armaram um barraco por causa de uma marca de bolacha de recheio, a mãe precisou intervir.
Os acompanhou, pra dar alguma opinião. Contentou-se somente, como uma desconvidada companhia.
Na volta, precisou se esquivar do cão vira-lata sarnento, que cismado, latia no seu calcanhar, além de atrapalhá-lo, a ajudar a carregar às sacolinhas.
No almoço, comeram macarronada e a mãe, permitiu que as crianças tomassem refrigerante.
De noite, foram na umbanda, próximo ao quartel da polícia militar.

Religião da família. Geração de avó para bisavó e bisnetos.
O menino não tinha vocação, mas respeitava a mãe e a crença dela. A menina era o oposto, tanto que possuía a missão de orar e pedir proteção para as entidades que protegiam e auxiliavam na jornada da vida.
A mãe teve um sonho, uma entidade avisou que a filha, seria médium, e que aguardasse a hora e deixasse nas mãos das entidades protetoras da criança, seu dom florescer. A mulher orgulhosa e feliz, aceitou.

Revelou o sonho para o Pai de Santo, que deu a benção e que ajudaria, a preparar a menina, para o dia da iniciação.
A menina admira os caboclos. Deseja ser o caboclo Sete Flechas. Encanta-se com a dança, força e sabedoria. Não teme Exus e as Pombas Giras, das Pretas Velhas, a Maria do Gongo, a emocionava.
Hoje, no terreiro, foi dia de celebração. Gente honrada com a nova entidade descoberta.

Celebrações, preces, canções e entidades contentes a celebrando.
Quando voltaram, ele os esperava. Queria ir também, infelizmente, por algum motivo que não se sabe, não conseguia sair de noite. Não gostava de ficar sozinho, ainda mais sem luz, e à casa escura. Ficou encolhido e sentado no quarto das crianças, em silêncio.

Tinha aflição e ansiedade, ao saber que a mãe e as crianças chegaram, se animou, feliz da vida, ao descobrir, que não o abandonaram.
Rapidamente, levantou e esquivou-se para o canto, na direção da janela e encostou-se na parede.
A menina entrou primeiro, seguido do menino, que a empurrou.
– Ai! Grosso! – Reclamou.
O irmão botou a língua pra fora.
– Olha, mãe! Tá mostrando a língua pra mim…
– Mentira! Não estou fazendo nada, ela que é chata!
– Mentira! Mostrou sim!

E a mãe, lá do outro lado, falou, de voz nervosa.
– O que tá havendo ai? Se eu sair daqui, pra apartar briguinha dos dois, podem ter certeza que não aliviarei. – Sentenciou.

E a menina, pra provocar, mostrou a língua para o menino, dando o troco nele.
Trocaram de roupa, colocaram pijama e comeram, antes de deitar. A mãe comeu preocupada, algum incômodo, a fez comer lentamente o jantar.
Não sentava na mesa, ficava mais do lado da menina. A mãe esticou o olho, nem reclamou, não se importava, com a presença dele, perto da menina.
– Que a senhora tem, mamãe? – Perguntou a menina, que a tempo observava, a reação preocupante da m
ãe.
– Tenho nada. Pensando somente. É isso. – Sorriu, um riso inseguro, que não soube pintar muito bem no rosto.
– Come sossegada. – Concluiu.

A menina obedeceu.
Ao deitarem, o menino esboçou uma nova provocação, mas a menina, o alertou do castigo, e ele mudou de ideia na hora.

Rezou para as entidades, os orixás, as bênçãos que recebera do Pai de Santo, e encerrou com o Pai-nosso.
Deitou, aguardou a mãe entrar pra dar beijo de boa noite. A luz se apagou, escuridão, fechou os olhinhos. Haviam vários sonhos pra sonhar, muitas imagens, para relembrar no dia. Dormiu.
Na beirada da cama, ele ajoelhou-se próximo do rostinho da menina. Era tão gracioso olhá-la, ouvir a sua respiração. De leve, acariciou o rostinho e os cabelos loiros dela. Em silêncio, resmungou uma boa noite timidamente. Foi descansar.






Terceiro Dia:




A família acordou bem-disposta. Café, pão e leite quentinho. Passarinhos soaram como bem-vindos, aos ouvidos. O dia começou bem.
As crianças de uniforme e mochila nas costas, a mãe, na sua maneira explosiva, ditava ordens, apressou-as, repreendeu uma suposta discussão entre os dois. Mas tudo terminou bem, conduziu os filhos na escola, depois, dirigiu-se ao seu compromisso, que não podia ser adiado, confiante, seguiu, pensando no que viria, no futuro incerto e cego.
Ele não tomou café, nem mordiscou o pedaço de pão.

A casa vazia e silenciosa, era uma tortura. No quarto das crianças, olhar para o lado de fora, era impossível. Janela fechada e trancada com cadeado. Abri-la jamais, conhecia o temperamento explosivo da mulher. Restou a sala, a caminhar na escuridão. A televisão desligada, o controle remoto largado no sofá, pedindo que tocasse nos seus botões. Negou pegá-lo, a apertar o botão vermelho e deslumbrar com o brilho da tela de imagens, do som, das cores, dos movimentos, das pessoas do outro lado da tela. Preferiu o barulho do silêncio, como o Preto Velho no altarzinho, ele também prefere assim. Se buscasse perguntas, para serem esclarecidas, não seriam as respostas e os conselhos do Preto Velho, que poderiam responder. Mas, faltava algo. Mas, o que faltava para si? Pedaços, vestígios, restos, coisas incompletas, parafusos perdidos. O que lhe tem tirado, que não possa descobrir e adivinhar? Na cozinha, a mesa suja de migalhas de pão, na xícara, o restinho de café com leite que o menino deixou. Sentiu o aroma, que ainda restava, mas, o café, estava frio. Voltou no quarto, desolado, angustiado, sentia muita falta da família, contou as horas, para o tempo passar e passar.
Parecia um garotinho feliz, ao ver a mulher entrar.

Não acenou, e a mesma, nem lhe deu bola. O cansaço tomava conta dela. Relaxou-se no sofá. Ela cochilou. Ele veio perto e esticou a mão para tocar o rosto dela.

Desistiu, ficou de pé, vigiando-a.
Minutos depois, as crianças entraram. Brigavam, e xingavam um ao outro. Tapas e pontapés, a mulher assustada, despertou. E gritou.
– Basta! Matarei um por um! Silêncio os dois! Estamos entendidos?
– Foi ela que começou! – Disse o menino, de cara feia.
– Mentiroso! É você que começa! – Reclamou a menina.
– É você a mentirosa!
– Sou não!
– É sim!
– Quietos! Já falei. Quietos, caramba! – Falou a mãe, erguendo a palma da mão, pra bater nos dois.

Com medo pularam no sofá, fazendo carinhas de anjos comportados.
Gostava das brigas das crianças, e do exagerado nervosismo da mãe. Não o incomodava, de maneira nenhuma. Não gostava de ficar horas sozinho, dentro de casa. Queria a rotineira companhia da família.
O café da tarde correu bem. Não aconteceu briga nenhuma e a mãe, ficara tranquila, tudo se seguiu, normalmente. Apenas vigiava o pessoal, sempre do lado da menina. Não entende a razão de preferir ficar do lado dela. Quando a mulher o viu, não se importou, não demonstrou nenhum interesse nele. Fingiu.
Depois, à sala e a TV. De tarde, somente programas feministas. A mulher, folgada na sua poltrona particular, os filhos, no sofá tramando rivalidade. No espaço que sobrou, ele ficou caladinho, tímido e desconfortável. Nem reclamou. Estava muito bem, mesmo no desconforto.
Eis que palmas soaram do lado de fora.
A mãe olhou e não gostou do que viu.
– Quem é, mãe? – Perguntou o menino curioso.
– O senhor Ademar.

Era o proprietário da casa. Ou seja, ela era alugada.
– Não é dia de receber o aluguel. – Comentou com desconfiança.

Sem esperar, foi saber do que se tratava da visita. Acabou trazendo o senhor Ademar pra dentro de casa.
Homem magro de cabelos ralos, pernas longas e nariz alongado, de calça e suspensórios marrom. Usava diariamente uma caneta atrás da orelha direita. Proprietário de dez imóveis e somente uma que não era alugada. Vivia da renda e do sustento dos aluguéis. Foi funcionário público, não casou e não teve filhos. Sobrinhos, tinha aos montes, raramente o visitam. Nunca deu muita bola para a família, considera-os interesseiros no seu patrimônio, que não era muito, mas rendia bons lucros.
– Sente-se, senhor Ademar. – Pediu a mãe para o homem, que viu as crianças olhando com carinhas curiosas.
– Ah, sem problemas. Está bom de pé. – Disse.
– Vocês. Já pro quarto. – Ordenou a mãe para os filhos.

O senhor Ademar interferiu.
– Não, não. Podem ficar. É do interesse deles também. – Confirmou.
– E do que se trata? Hoje, não é dia de receber o aluguel.
– Exatamente. Não é o dia. Trago uma notícia ruim, para a senhora, e as crianças.
– Notícia ruim? Que notícia ruim, é pior que a minha pressão alta? – Perguntou a mulher de cara larga.
– Não quero que fique nervosa. Não queria que chegasse a esse ponto. Quero evitar problemas. A senhora entenderá.
– Sim, sim. Deixe de enrolação e diga do que se trata. – Falou demonstrando impaciência.

As crianças de olhinhos esticados, escutavam de orelha em pé.
Desconfortável na poltrona, ele encarou o proprietário, de cima a baixo. Pena que não podia palpitar. Sobrou ver e escutar a conversa.

– Certo, certo. – Voltou a falar o homem. – Mais uma vez, não quero que fique nervosa. A situação é indelicada até pra mim que…
– Fala logo, homem, está me deixando nervosa! – Falou desesperada.
– Desculpe, desculpe. Não é minha intensão de enrolar. Pois bem, mas é difícil de falar. Está certo, sem enrolação. A senhora e as crianças terão que deixar a casa o mais breve possível.
Posso lhe oferecer um prazo de três meses para encontrar uma nova locação. – Disse o proprietário, afinal.
– Quê? Sair da casa? Como assim, sair da casa? Estou pagando direitinho, não devo nada.
– Eu sei. Nunca deixou passar o prazo. Mas o problema, é que estou recebendo pressões de moradoras que não aceitam a senhora no bairro. E se eu perdê-las, como ficarão os meus negócios?
– O senhor fará isso comigo e com meus filhos, porque algumas fofoqueiras não aceitam a gente?
– Lamento. Lamento muito pela situação.
Estou recebendo pressões por todos os lados. Aceite, que é melhor a senhora e seus filhos, encontrarem outro lugar, do que a mim que perderá mais gente.
– Está pensando nos seus lucros e não no meu problema? Tenho crianças pequenas. Onde, em qual lugar, sairei com elas?
– Tenho contrato de três meses. Três meses de prazo, tempo justo para encontrarem outro lugar.

O senhor Ademar carregava no braço uma male tinha de couro. Vasculhou minuciosamente e retirou o que procurava.
– Aqui! O contrato. Pegue. A senhora assina e ficamos acertados. É o que posso lhe oferecer.

Passou o papel para a mulher. As crianças observavam o rosto avermelhado da mãe, que as deixavam de olhos arregalados e assustados.
– Pare! A senhora não pode….

O senhor Ademar tentou inutilmente deter a mulher, que com raiva, rasgou o contrato.
– Não devia ter feito o que fez! Está louca?- Falou alto o homem.
– Sai daqui velho, aproveitador, Saia!
– Foi um erro, um erro! Prejudicou a senhora mais ainda!
– Saia, anda logo. Saia!

E foi, empurrando o proprietário pra fora e ele reclamando da burrice que ela cometeu. Bateu com força a porta. Gritou, berrou, insana, a pressão aumentou, descontrolada, entrou na cozinha, grise. Quebrou tudo, descontrolada, berrou, xingou.
– Cornas, fofoqueiras, mal-amadas, filhas da mãe!

Quebrou, a pressão subiu, nunca se viu tão nervosa. Os filhos amedrontados. A menina tremeu, o menino, o coração dele, acelerou. Os dois juntinhos, um abraçando o outro, um cuidando do outro, um protegendo o outro. A mãe fora de si quebrou o copo e o prato, tudo que encontrou no caminho. Virou caos, virou pesadelo.

Desorientado e deslocado, com pena das crianças. Coitadinhas, era enorme o medo deles.

Não sabia como impedir. Protegê-los. Era a solução. Sentou perto delas e o longo braço magro, envolveu-as. Protetor, ele se acostumou com essa gente que lhe fazia bem.
De noite, lá pelas dezenove horas, a mulher se acalmou. A menina ajudou a levá-la até o quarto.

Chorava, e a menina, teve um pouco de dificuldade.

Arrumou a cama da mãe e a colocou pra deitar. Foi rezar aos santos de devoção da mãe.
Eram vinte e uma horas. Abriu a porta devagarzinho. Seus pezinhos leves, mal faziam barulho. Ele veio acompanhando, discreto, acanhado, temendo a reação da mulher.
A menina cheirava a sabonete de jasmim, vestido amarelo que combinava com os cabelos loiros prendidos.
– Mamãe?- Chamou baixinho.

A mulher sorriu para o rostinho sereno da menina.
– Oi, meu anjinho. – Respondeu.
– Vim de ver. Rezei pra iluminar e cuidar da senhora.
– Obrigada, querida. Agora estou bem. Desculpa por assustar você, e o seu irmão.
– A gente entende.
– Que bom, querida. Vem pra cá, deita aqui com a mamãe.

E deitou, sentiu o calor e a respiração da mãe.
– Preciso que cuide mim.
Abraçou a menina, que quietinha sentiu o aconchego gostoso da mulher.

Na beirada da cama, ficou emocionado com o amor das duas. Resolveu também deitar, tinha espaço e conseguiu, esticou novamente o braço longo e magro. Abraçou a mulher, que deu um chega pra lá nele. Com jeitinho se ajeitou, repetiu o mesmo gesto e movimento, desta vez, obteve sucesso.
Um tempo depois, a mãe dormiu. A menina saiu sem fazer barulho. Eram vinte e duas horas e à noite, se estendeu por todo o bairro…


Quarto Dia:




Não sabia do motivo de estar com a família. Estar junto com eles, lhe faz bem. Também não sabia quem era, se tinha um nome, de onde viera, e de que maneira, chegou na casa.

Acostumou-se com eles, sentia uma imensa falta, na enorme distancia de horas, quando ficavam fora de casa. Tinha mais carinho com a menina, o jeitinho dela de acender a vela e orar, a energia agradável, uma luz que iluminava, dando a paz, que não entendia, o por quê.

A vela o atraiu, as orações, pedidos e proteções o atraíram. Desconhecido, sem pertencer a família.

Ou pertencia? Do nome, não se recorda. Muito menos, de qual lado surgira. Ele queria entender o motivo de aceitá-lo, de não reclamar ou expulsá-lo, até porque, era um estranho. Às vezes, desconfiava de que eles não o sentia, outras vezes, tinha certeza, que o enxergava, porém, negavam dizer. Se estivesse atrapalhando, o mandariam embora, mas como era um hóspede quieto, e estava apenas vigiando-os, não havia razão pra retirá-lo dali.
Hoje, acordaram preocupados. Falaram pouco. Tomaram o café pronunciando poucas palavras. O motivo principal, era o destino deles, se realmente sairiam da propriedade.
– Não. Não sairemos. Que se dane as mal-amadas, que não têm o que fazer. Eu tenho.
Querem briga, terão briga. Não sou de fugir de nada. – Disse a mãe com orgulho.
– Pedirei ao Papai do céu ajudar a gente, mamãe. – Di
sse a menina.
– Isso não adianta coisa nenhuma. – Coment
ou menino sem fé.
– Adianta sim! – Di
sse a menina, de cara feia.
– Não. Não adianta!
– Ei! – A mãe soc
ou a mesa e assustou o menino. – Não faça mais isso com a tua irmã, entendeu?
– Tá bom, mãe… Desculpa…
– Não diga que não vale a pena, pois vale muito. Mesmo para aqueles que morreram e não aceita
ram a morte e precisam de luz para entrar no céu. – Falou a mãe. – É a missão da sua irmã, iluminar os espíritos desencarnados, que não vivem mais no plano físico e que aceitam a morte e caminham na paz para o mundo de Oxalá.
– Sei disso, mãe…. – Responde
u o filho.
Na mesa, sem beber, ele escutou o que diziam. Sentiu estranheza no corpo, ao ouvir a palavra, espíritos desencarnados. Luz, e mundo de Oxalá.

Rejeitam a morte, vivem no plano físico, consideram-se vivos. De qualquer forma, isso o atingiu, não desconfiou do motivo e da razão. Algo que lhe faltava, desconhecia em qual parte, se perdera. Entrou a tristeza, entrou a angustia. Ninguém o conheceu, ninguém chamou seu nome. Nem o percebeu na mesa do café.







Ultimo Dia: Conclusão


À noite, a menina acendeu a vela. No quarto, orando e as mãozinhas juntas concentradas. Rezou com devoção e com paixão. Glorificou as entidades e os guias da umbanda. Pediu proteção, até para as entidades dos Exus, e que as almas, seguissem tranquilas e em paz, para o reino do Papai do céu.
Ele assistia a menina, no canto da janela, atencioso. O vento, entrava. Vento frio, arejando. A luz da vela, chamava, a menina, o tranquilizava. Paz, paz era o que, fortalecia.
A mãe cham
ou a menina, lá da sala.
– Terminou?
– Já, mamãe. – Responde
u.
– Vem pra cá. Feche
à janela, a novela está começando. – Avisou.
– Tá bom. Estou indo.

Ela olhou na direção da janela. Na direção, que ele se encontrava, naquele instante.

A menina levant
ou e caminhou. Ele ficou parado e surpreso, sem se mexer. Ela andou ao encontro dele, rostinho sereno e cabelos loiros escorridos. A vela ardente, iluminava. A lufada de frio, invadia o pequeno quarto.

Parado, observou a menina, se aproximando. Será que o viu? Sim, ela o viu e sorrindo, caminhou.

Seu ser se felicitou, alegre, muito alegre. A menina o reconheceu, que não era nenhum, invasor invisível. Alegre, muito alegre. Abriu os braços para recebê-la, e dar boas vindas. Sorriu, acreditando que existia.
A menina atravessou. Atravessou o corpo dele. Não houve dor, não sentiu nada. Atravessou. Ela fechou a janela. Da mesma forma, atravessou outra vez, como se atravessasse, uma cortina invisível. Verificou o quarto, antes de sair. Apagou a luz e fechou a porta.
Trevas e solidão. Triste, sentou na cama. Não aceitou o que era, não aceitou o que era

Frustrado, desiludido e inconformado,
colocou a mão no rosto. Clamar alto, não resolveria. Desabafar, seria inútil. Não sabia para aonde ir, e aceitar que não passava de uma….
Sobr
ou o risco da lágrima, a lacrimejar. Sobrou o choro a dominar.
E a alma penada, chorou.


(Rod.Arcadia)